Entrevistas e Textos Importantes

10.12.03

Dez anos de intensas trevas
Há 35 anos era promulgado o AI-5



O ano era 1968. Época de fortes mobilizações sociais em inúmeros países que chegaram ao Brasil na forma de protestos contra o Regime Militar. Eventos como a Passeata dos Cem Mil, os festivais da canção, o movimento estudantil pressionavam o governo. A sociedade queria maiores liberdades democráticas.

Tais fatos fizeram a linha-dura do Regime acreditar que a “Revolução” estava se perdendo. E gerou uma reação, o Ato Institucional número 5. A gota d´água para a promulgação do AI-5 foi o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves na Câmara Federal, no início de setembro, apelando para que o povo não participasse dos desfiles militares de 7 de setembro.

O governo solicitou ao Congresso licença para processar o deputado e também seu colega Hermano Alves, autor de uma série de artigos de oposição à Ditadura. Em 12 de dezembro a Câmara recusou por uma diferença de 75 votos, inclusive de deputados da governista Arena, conceder a licença para o processo dos dois deputados. Na noite seguinte, foi baixado o Ato e decretado recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado.

Com o AI-5, o presidente da República tinha poderes totais para perseguir e reprimir as oposições, decretar estado de sítio, intervir em Estados e municípios, cassar mandatos e suspender direitos políticos. O Governo cassou 110 deputados federais, 160 estaduais, 163 vereadores, 22 prefeitos e afastou quatro ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 só foi revogado em 1979, no governo do general Ernesto Geisel.

Para o ministro anglicano Jorge Luiz Freire de Aquino, integrante do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), os dez anos de vigência do AI-5 foram um período “em que aquilo que a Bíblia chama de trevas reinou nesse país com o cerceamento completo da opinião. Foram dez anos em que a autoridade se considerou um César, divina, inquestionável. Dez anos de arbítrio, de tortura, de morte, de trevas”.

Segundo ele, o papel da igreja evangélica mudou muito naquele período. “Havia uma igreja antes do Golpe e surgiu outra depois”, disse. Antes de 1964, a Igreja tinha razoável unidade, desenvolvimento teológico e estava ligada às questões políticas do país. “Era uma igreja aberta que depois do Golpe se tornou uma igreja reativa, teologicamente conservadora, voltada para dentro e oportunista”, disse Aquino, referindo-se às vigílias de agradecimento a Deus pelo Golpe e aos Cultos de Ação de Graças no Maracanã, comemorando o sucesso da “Revolução”.

O maestro Alberto Florêncio da Hora, membro da Igreja Presbiteriana das Rocas, foi uma das vítimas do AI- 5 no estado. No fim de setembro de 1973 foi preso, passando cerca de dois meses detido. Foram seus endereços de tortura e sofrimento, nesse período, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) de Recife (PE), o Quartel da Polícia do Exército em Olinda (PE) e a Colônia Penal Dr. João Chaves.

Militante do PCR (Partido Comunista Revolucionário), foi preso quando pessoas ligadas a ele também caíram pela Repressão. “Meu pai foi líder de sindicato e aposentado compulsoriamente pelo AI-5. Fui criado dentro dos sindicatos vendo aquela turma incendiária”, disse.

Na época em que foi preso, Alberto era freqüentador da Igreja em que sua esposa era membro. “Desde 66 eu freqüentava a igreja só não era membro”, afirmou. Na sua opinião, o AI-5 “foi uma das grandes violências políticas e institucionais ocorridas no país, talvez tão maior quanto o Estado Novo”.

E o papel da Igreja? “Solidariedade total”. Segundo ele, o pastor e os irmãos procuraram assumir uma postura de defesa e proteção, dele e da família, ainda que não tivessem condições de fazer muita coisa.

Essa é uma atitude que difere do que ocorria costumeiramente. Em tempos de AI-5 muitos membros politizados de igrejas evangélicas foram delatados às forças da Repressão por irmãos e pelos próprios pastores. O reverendo Jorge Aquino diz que delatar ovelha é entregá-la à boca dos lobos. “Tentar fundamentar isso biblicamente é trair o chamado de Cristo para o pastoreio. Significava angariar capital político para negociar com as autoridades”, disse.

“Tenho amigos que na época de jovens foram entregues para a tortura e morte por pastores que hoje estão na moda, vendem livros e falam para auditórios repletos sobre Batalha Espiritual”, disse Jorge. “Tem gente fazendo sucesso hoje que tem muito sangue nas mãos”, denunciou.

Alberto da Hora acredita que uma postura conivente das igrejas com os abusos da Ditadura deve ter sido produzida por uma certa ingenuidade quanto ao momento e medo da Repressão. “Meu sogro, que era pastor, duvidava que eu tivesse sido torturado”, disse.

Sobre a defesa de uma postura acrítica quanto ao Regime a partir da leitura de textos como Romanos 13, o maestro acredita que a Ditadura estava na contramão do texto. “A gente imagina que o texto se refere a um governo instituído por vias democráticas. Ninguém pediu para os militares se colocarem no poder. Não era um poder legítimo, tinha de ser combatido mesmo”, defendeu.

O maestro afirma trazer ainda seqüelas físicas, emocionais e psicológicas como resultado dos meses de tortura que sofreu. “Não gosto de estar em multidões nem em lugares estranhos. Ainda tenho pesadelos recorrentes à época da prisão”, confessa. Mas ele diz não ter mágoas, apesar de ter passado um período revoltado com os abusos sofridos. “Atualmente a gente reflete que não tem como ter mágoas. A visão que tenho é que aquilo era uma guerra. Luto para que algo assim não ocorra de novo no Brasil ou em qualquer lugar do mundo”, disse.

Da Hora acredita que é importante dizer o que houve naqueles dias negros no Brasil. “As pessoas têm que saber que havia tortura, porque tem gente que acha ainda hoje que isso não existia”, concluiu.